O BILHETE - CONTO


O BILHETE...

(Conto de um Dia de Finados)

___Bom dia moço, poderia me emprestar um pouco o seu balde, para pôr água no vaso, imagine que esqueci de trazer o meu.

Carlos, que estava abaixado, ajeitando as flores, no túmulo, ergueu a cabeça para ver quem era a mulher que lhe pedia o balde.

___Rosinha, é você? Há quanto tempo! Nossa!

___Sinceramente não estou me lembrando de você...--- respondeu ela.

E então, enquanto ele lhe entregava o balde, foi avivando a sua lembrança

___Eu sou aquele magrelinho que levava janta para você, na Votorantim.

Então ela ficou olhando para ele, segurando o balde e exclamou:

___Ah! Agora lembrei, o Magrelinho da marmita, como eu o chamava. Nunca mais o vi.

Carlos contou que fora trabalhar fora por seis anos, e que agora a empresa veio para Sorocaba e por isso ele voltara havia três meses.

___E quem está aí nesse túmulo? Ela quis saber

___Minha mãe, que faleceu a menos de um ano. E você, quem é o falecido?

Rosinha ajeitou os cabelos que lhe caiam sobre o rosto, e respondeu que era o seu esposo, falecido há um ano, vítima de um acidente de trabalho.

Conversaram mais um pouco e ela se lembrou de algo, um bilhetinho que um certo dia achou em sua marmita, onde estava escrito “Você é linda, quando eu crescer quero te namorar”

E quando ela veio devolver a marmita vazia, perguntou a ele

___Você sabe quem colocou esse bilhete na minha marmita?

Ele empalideceu..., mas disse que nada sabia a respeito daquele bilhete.

___ Não foi você? - Insistiu ela.

Mas ele negou com veemência.

O tempo passou, o bilhetinho de amor ficou no passado, e agora, ali, naquele Dia de Finados, Rosinha o trouxe de volta, e quando ela falou do episódio, avivou a lembrança de Carlos, que sorriu, quando ela indagou se tinha sido ele...

Carlos ficou corado, como naquele dia tão distante, e admitiu que fora ele o autor do misterioso bilhete.

___Desculpe Rosinha, foi coisa de menino, você entende?

Rosinha também sorriu e exclamou:

___Sabe Carlinhos, sempre achei que era mesmo você. Mas me diga, você se casou ou está solteiro?

___Não me casei não, Rosinha. Nunca dei sorte com mulheres, namorei umas duas, mas uma era desajuizada, a outra me traiu, com um colega de escola, e então o tempo passou e desisti de casar-me, ficando para titio, como você está vendo.

A conversa que estava ficando boa, logo acabou interrompida, pois, era Dia de Finados, e as pessoas conhecidas foram chegando, quando passavam por ali, cumprimentavam e aproveitavam para conversar. Carlos despediu-se da Rosinha, que naquele momento conversava com uma parenta, e foi se afastando com o coração agoniado, porque de repente, tudo o que julgava sentir por ela, na sua meninice, pareceu ter voltado, primeiro em sua mente, e depois em seu coração. Lembrou-se dela bem mais nova, sempre linda, bem arrumada, quando ia á Igreja e depois ficava dando volta com as amigas, no Jardim Bolacha, ele estava com os seus dezesseis anos e alimentara aquela ilusão de namorar Rosinha, mas era um amor impossível, pela diferença de idade, ela quase dez anos mais velha que ele.

Quando estava já saindo do “São João Batista”, encontrou com velhos amigos na entrada do cemitério e a conversa arrastou-se por quase uma hora. Quando se despediu dos amigos e rumava para o seu carro, um Fusca 75, primeiro e único carro que estava bem conservado, avistou Rosinha indo para o ponto de ônibus. Então aquele sentimento do distante passado, aflorou de vez, e o seu coração bateu mais forte ao pensar em oferecer a ela uma carona. Será que aceitaria?

___Não vou lhe atrapalhar, Carlinhos? --- disse ela, inclinando-se na janela do acompanhante, deixando os lindos cabelos caírem em seu rosto --- quando ele timidamente lhe ofereceu a carona.

___Imagine Rosinha, será para mim um grande prazer. ---- respondeu.

Ela falou que morava na Chave e ele, gentilmente a levou até próximo de sua casa, e quando estacionou para ela descer, tomou fôlego, criou coragem e meio gaguejando, falou:

___Rosinha, me desculpe, não se ofenda com o que vou dizer. Você continua linda como naqueles tempos, será que a gente não poderia se encontrar qualquer dia desse?

Ela ficou sem graça e respondeu que era muito apaixonada pelo esposo e não conseguia esquecê-lo, e envolver-se com outra pessoa, seria para ela como que uma traição a memória do falecido.

___Mas muito obrigado pelo elogio, Carlos, podemos ser bons amigos...por que não?

Carlos desculpou-se mais uma vez, pela ousadia do convite, e foi embora chateado pela negativa da Rosinha. Por algum momento sonhou conquistar aquele coração, mas descobriu que o seu mais forte concorrente era um morto. Já em casa resolveu sufocar aquilo que julgara ser amor, e que irrompera dentro dele com força, naquele Dia de Finados, trazido pelas lembranças.

___Bobagem eu voltar a gostar dessa moça, águas passadas não movem moinho. --- pensou. E assim, naquela noite foi dormir, disposto a não mais se iludir com nenhuma mulher. Parece que seu destino era ficar solteirão a vida toda.

Mas, no domingo, estava na feira livre, no mesmo Jardim Bolacha onde via ela dando voltas nas noites de domingo, quando seu coração quase saiu pela boca ao ver Rosinha na Barraca de Frutas. Mas fazendo prevalecer a razão, decidiu não a abordar, para não ser inconveniente. Foi até a estação prosear com os ferroviários, entre eles o Brusarosco, o Expedito, o Quinzinho, e o Nêne Burrico, coisa que sempre fazia. Dede repente o Expedito, operador da máquina elétrica, disse aos demais

___Nossa! Que morena cor de jambo coisa mais linda, que vem vindo para cá!

Carlos, que estava de costa para a praça, virou-se de repente e viu que, a morena a que o Expedito se referira, era ela, Rosinha. Então, sem pensar duas vezes, disse a ele:

___Alto lá, mais respeito com a minha namorada! --- Rosinha chegava naquele momento e nem se deu conta de que falavam dela. Pediu licença para colocar as três sacolas no bando, enquanto ia beber água, de uma torneira muito concorrida, que ficava no final da calçada, na direção da fábrica. Assim que ela foi, o Brusarosco comentou:

___Ué? A sua namorada nem olhou na sua cara! Ela é mesmo sua namorada ou você está com papo prá cima de nóis?

Carlos nada respondeu, e a turma caiu na risada. Naquele momento acabaram se dispersando, pois tocou o telefone da agência, e o Brusarosco correu atender, o Nêne Burrico subiu no Bonde da Solda, junto com o motorneiro Expedito, pois teriam que ir até a Vila Assis fazer um reparo na linha. Ficou só o Quinzinho que comentou, antes que Rosinha voltasse

___Ela é minha vizinha viúva, mas eu nunca lhe fiz um gracejo, senão a Julietinha me mata com o pau do macarrão!

Naquele momento Rosinha voltou, passando as mãos umedecidas no rosto, para amenizar o calor que era bem forte naquela manhã de domingo.

___Posso ajudar você carregar a sacola, Rosinha?

___Carlinhos? Nem vi que era você. Pode sim, hoje exagerei na feira e enchi três sacolas, que estão muito pesadas.

Saíram pelo Jardim Bolacha, na pista contrária onde estava a feira, caminhando pela calçada da Via Férrea, aproveitando a sombra dos pinheiros. Ela perguntou onde estava o carro, então ele disse que estava a pé, pois morava ali por perto.

___Nossa Carlinhos, então me dê aqui essas sacolas, não quero atrapalhar, pensei que estivesse de carro.

___Imagine, Rosinha, faço questão de ajudá-la, afinal, ontem você me disse que seremos bons amigos, e um amigo deve sempre ajudar o outro.

E seguiram em direção á Chave. E quando passaram sobre o pontilhão, Rosinha sugeriu que se sentassem em um banco, na sombra de uma árvore na Praça da Bandeira, pois ambos transpiravam pelo peso da sacola, e o sol estava demais. E acomodando as sacolas ali por perto, sentaram-se para descansar e conversar. Foi quando ela falou:

___Carlos, sabe que ontem a noite, mexendo nas minhas coisas antigas, achei em uma bolsa de quando eu ainda era solteira, e você nem imagina o que encontrei nela...

E como Carlos nem fizesse ideia do que era, Rosinha continuou

___Aquele bilhete de amor! --- disse, com os olhos brilhando.

Carlos sorriu, a conversa estava tomando o rumo que ele queria, e respondeu

___Que engraçado, aquele que falamos dele ontem...Que coincidência, não?

___Pois é... o seu bilhete, que guardei com carinho por muito tempo, mas depois, quando me casei e sai da casa dos meus pais, o guardei tão bem que nunca mais o encontrei, acreditando que tivesse mesmo jogado fora.

___E por que o guardou por tanto tempo? --- indagou ele, bastante curioso

___Pela pureza das letras, havia sinceridade no que dizia, e como sempre tive uma certa desconfiança de homens, por achá-los falsos, comecei a alimentar a ilusão de que, iria esperar você crescer para aceitar o pedido de namoro, mas você sumiu, e até pensei que havia encontrado alguém...

Carlos limpou o suor que lhe caia pelo rosto, e diante dessa revelação nada falou, mas deixou sua mão deslizar na direção da mão de Rosinha, que como sempre estava linda, com vestido azul e os cabelos repartidos ao meio, parecia bastante jovem, não aparentando a idade que tinha. Pegou timidamente na mão dela e disse, quase cochichando...

___Então...isso quer dizer que...

Ela deixou que ele pegasse em sua mão. Em um Dia de Finados, o velho amor do passado voltou, inesperadamente, como um sol que reaparece depois de uma chuva de verão.

Naquele momento, um Bem Te vi cantou, bem em cima da árvore, em cuja sombra eles estavam. Carlos estava desesperado, não largou da mão dela, mas queria que ela dissesse algo. Depois do Bem-Te-Vi, passou um trem de carga, vindo da Fábrica de Cimento, puxado pela velha “Maria Fumaça” que, além do barulho intenso, começou um longo apito para alertar o pessoal da estação, de que estava chegando. E eles ali, de mãos dadas, tão quentes que parecia ter caído sobre eles uma brasa da velha Locomotiva a vapor. E quando o último vagão sumiu na curva da Vala, Rosinha olhou para ele, ameaçando dizer algo, mas naquele momento chegou o João Chato, que parou bem ali, onde eles estavam, e começou a gritar “É o Curintia...é o Curintia!”. E quando ele se calou, Rosinha enfim deu a tão esperada e sonhada resposta:

___Pedido de namoro aceito, “Magrelinho da marmita”!

E naquele momento mágico, quando a imagem do falecido desapareceu de vez do coração da Rosinha, os rostos se aproximaram, para um possível beijo, interrompido por um algumas crianças conhecidas, que ali estavam brincando e que, ao verem aquela cena, começaram a cantar em coro:

___Vai tê bolinho....vai tê bolinho...vai tê bolinho, na casa da Rosinha!

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